Prólogo 17. Legião Urbana: “Central Do Brasil”

Seguindo o clima do prólogo anterior, permaneçamos na seara do BRock, tratando de outra banda brasileira muito bem-sucedida: a Legião Urbana.

O conjunto liderado por Renato Russo manteve, ao longo de sua breve existência (ao menos em comparação com vários de seus contemporâneos, que tocam até hoje), relativa proximidade com o universo da música instrumental. No conjunto de seus oito discos de carreira, a banda apresentou sete temas dessa natureza (que, há algum tempo, coligi nesta lista). Nem todos são autorais, pois a lista inclui “Come Share My Life” (do folclore estadunidense) e “High Noon (Do Not Forsake Me)”, vinheta sem vocais que relê a canção tema do filme Matar ou morrer (1952), composta por Dimitri Tiomkin e Ned Washington – ganhadora do Oscar de Melhor Canção Original, assim como outra obra letrada por Washington e gravada por Renato, dessa vez em seu disco solo Stonewall celebration concert (1993), “When You Wish Upon A Star”; a música é de Leigh Harline e foi tema de Pinóquio (1940).

O prólogo de hoje, “Central Do Brasil”, dificilmente entraria no 365 Temas Instrumentais Brasileiros, porque, no ano que vem, quero evitar ao máximo as vinhetas. Seu aparecimento no clássico Dois (1986) foi meticulosamente pensado pelo líder do conjunto, como se lê em suas anotações sobre o disco (e transcrevo um trecho, de tais notas, apresentado no livro Dias de luta: o rock e o Brasil dos anos 80, de Ricardo Alexandre):

“Central Do Brasil” – Esta faixa serviria de ponte temática e instrumental para eventuais problemas de incompatibilidade entre as diferenças individuais das outras canções, uma interação entre o elétrico e o acústico (quanto à textura instrumental) e o oblíquo em contraste ao acessível (letras e temática), sendo útil também como complementação quanto ao timing (determinando o equilíbrio entre a duração de tempo dos lados um e dois) (p. 285).

Mas esse tema, com pouco mais de um minuto e meio – e apesar de sua presença meramente pragmática em Dois, como atestam as considerações acima – nos dá a oportunidade de tratar de um assunto pouco explorado: o violão de Renato Russo.

Há tempos venho observando que a forma como o vocalista e letrista tratava seu principal instrumento de acompanhamento era peculiar.

De um lado, temos canções em que as palhetadas são nervosas como nunca se ouviu, nem se ouve, no rock nacional: é o caso de faixas como “Eduardo E Monica” e “Dado Viciado”, acontecendo também em releituras, mais especificamente, em “Cherish” (Madonna), “If You See Him, Say Hello” (Bob Dylan) e “Thunder Road” (Bruce Springsteen). Esse estilo, ainda que de forma mais sutil, também aparece nas versões originais de “Baader-Meinhof Blues”, “Quase Sem Querer”, “Que País É Este”, “Há Tempos”, “Quando O Sol Bater Na Janela Do Seu Quarto” e “Meninos E Meninas”, além de “Love Song”, “Metal Contra As Nuvens”, “1º De Julho” e “Mariane”.

De outro lado, salta aos ouvidos a forma muito particular e delicada como Renato dedilha ou constrói arpejos, o que se ouve nesta “Central Do Brasil”, mas também em diversas faixas do Acústico MTV da Legião (“‘Índios'”, “Hoje A Noite Não Tem Luar”, “O Teatro Dos Vampiros”). Ora, a chave para a compreensão desse estilo pode ser encontrada na biografia Renato Russo: o filho da revolução (de Carlos Marcelo), em que é narrada uma interação entre o cantor e o guitarrista Fred Nascimento, que então começava a integrar a banda de apoio da Legião Urbana, em suas turnês dos anos 1990:

Nascido em 1957, Fred tinha participado da efêmera banda Rosa Púrpura e conhecia muito de rock inglês, uma das maiores influências da Legião. Mas o que impressionou mesmo Renato foi uma coincidência que o vocalista notou ao observar Fred dedilhando o violão logo nos primeiros ensaios:

– Você dedilha só com o indicador e com o polegar, igual a mim. Você faz bico de papagaio! (p. 336).

De fato, observando os poucos registros em vídeo da Legião Urbana – especialmente o já mencionado Acústico MTV – o tal “bico de papagaio” fica evidente. E é interessante lembrar que Renato, em várias entrevistas, procurou defender a brasilidade que permearia os arranjos de suas canções, retrucando quem bradava ser a Legião uma banda alheia à diversidade rítmica de nosso país. O próprio Fred Nascimento, mais tarde, daria razão ao amigo, talvez lembrando do episódio do “bico de papagaio” – leia-se novamente um trecho do livro citado acima:

O Renato viu que eu descobri que a forma de utilizar o violão no som da Legião é muito brasileira. Vem muito da tradição da viola, ainda que inconsciente. Por isso, provoca tanta identificação. Todo mundo que vai tocar Legião, mesmo músicas como “1965 (Duas Tribos)”, tem que se imaginar fumando um cigarro de palha, em frente a uma casinha de sapê (p. 353).

Pois o que se ouve em “Central Do Brasil” é mesmo isso: uma toada jangle-pop. Faz todo sentido, assim, que uma banda contemporânea como Charme Chulo – da qual falei no 365 Canções Brasileiras – faça exatamente esse tipo de som, que “mistura Legião com Tião Carreiro”.

Para o ano que vem, prometo abordar mais um tema instrumental da Legião neste blog, comentando também faixas dessa natureza que constam nas aventuras solo dos ex-integrantes Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá. Ainda, haverá uma composição de Renato lançada por outra banda de Brasília… você consegue adivinhar qual?

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