142. Capital Inicial: “Benzina”

Tive a frustração adolescente de não ter conseguido conversar com pessoal do Capital Inicial após o show que banda fez em São Carlos, no ano 2000, numa chuvosa noite de novembro. Excursionando em sua primeira turnê acústica, Dinho Ouro-Preto e companhia desfrutavam de uma exposição nunca antes recebida. Era o momento perfeito para que eu transmitisse à banda minha ideia, com a esperança que ela saísse do papel: o Capital deveria gravar um disco apenas com composições do Aborto Elétrico – conjunto punk de onde veio sua cozinha, os irmãos Flávio (baixo) e Fê Lemos (bateria), além de Renato Russo –, incluindo temas inéditos que, então, circulavam pela internet em gravações piratas precaríssimas, datadas de 1980 ou 81. Ocorre que, cinco anos depois, o projeto virou realidade (não posso saber se, em 2000, isso já estivesse nos planos). Apoiada pela MTV, a banda lançou MTV Especial: Aborto Elétrico, CD e DVD com um documentário sobre o processo de gravação.

As nove canções do Aborto apresentadas tanto na discografia da Legião Urbana, quanto na do próprio Capital, foram relidas com os arranjos primitivos, como se ouve nos sons piratas. No restante do repertório, nove composições inéditas, algumas já conhecidas dos fãs, tanto por conta dos shows pirateados, quanto por reportagens da revista Showbizz que, desde fins dos anos 1990, transcreviam algumas das letras “perdidas”. Assim, o disco trouxe “Helicópteros No Céu”, “Anúncio De Refrigerantes”, “Heróina” e “Construção Civil”, que pipocavam por aí em registros caseiros e praticamente inaudíveis, mas também trouxe à luz canções quase inteiramente desconhecidas, como “Submissa” e “Despertar Dos Mortos”. Ainda, o documentário mostra o interessante processo de reconstrução de “Love Song One”, a partir de uma gravação parcial do Aborto Elétrico, de rascunhos da letra deixados por Renato e, claro, pela memória dos irmãos Lemos. Também é exibida, quase em tempo real, a descoberta de uma gravação esquecida, com uma canção cujo título seria aproveitado na faixa 8 do primeiro disco da Legião Urbana, “Baader Meinfhof-Blues” – e eis que o Capital concluiu, aos 45 do segundo tempo, uma gravação dessa “Baader Meinhof-Blues nº 1”.

Ironicamente, MTV Especial: Aborto Elétrico traz uma faixa instrumental, nosso tema de hoje, “Benzina”, composta por Renato e pelo primeiro guitarrista do Aborto, André Pretorius. Digo “ironicamente” por dois motivos. Primeiro, porque de fato o Aborto Elétrico começou como uma banda instrumental (o que pode parecer surpreendente, considerando as habilidades de Renato como letrista e cantor), e conta-se que sua primeira apresentação foi um espetáculo com não mais que cinco números formatados apenas para baixo, bateria e guitarra, que tiveram que ser repetidos para que o show não durasse menos que 20 minutos. E, em segundo lugar, a presença de “Benzina”, sem vocais (que, na verdade, foram gravados, mas a voz de Dinho foi distorcida de forma a ficar totalmente incompreensível), é irônica porque a banda não quis se ver associada a uma letra com estrofes como “Não tenho mais dinheiro / Nem pra perna nem pra quina / Só tenho 20 mangos / Pra comprar benzina / Fui até a farmácia / Eu e minha prima / Levei os 20 mangos / Pra comprar benzina” ou “Dentro do cinema / Eu tô com tudo em cima / Não vai pintar sujeira / Eu vou cheirar benzina / Não quero cocaína / Não quero benzadrina / Não quero heroína / Vou cheirar benzina”. Para um projeto que visava resgatar obras de uma das primeiras bandas do punk brasileiro, nada menos punk do que a auto-censura.

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