147. André Mehmari Trio: “Um Girassol Da Cor De Seu Cabelo”

A história já foi contada: em 1972, o Brasil e o mundo conheceram Clube da Esquina, obra assinada por Milton Nascimento e Lô Borges, mas congregando uma falange de músicos que incluía Wagner Tiso, Toninho Horta, Beto Guedes, Robertinho Silva, Tavito, Luiz Alves, Nelson Angelo, Rubinho Moreira e Paulinho Batera, além das regências de Paulo Moura, os arranhos de Eumir Deodato e um coletivo de compositores de primeira linha, que permutava entre si os nomes de Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Fernando Brant, além dos próprios Lô e Bituca.

Quase nos arredores do cinquentenário do clássico, e do octagésimo aniversário de Bituca, apareceu um memorável disco-tributo, Na esquina do Clube com o sol na cabeça (2019), do André Mehmari Trio. Essencialmente jazzista, o álbum tem sonoridade homogênea, com poucas variações na formação: geralmente, é André nos teclados, Sérgio Reze na bateria e Neymar Dias no contrabaixo. O repertório, distribuído por 11 faixas, se concentra no primeiro Clube e em sua continuação de seis anos depois, Clube da Esquina 2 – no qual novos (e velhos) nomes se juntavam a Milton, como Flávio Venturini, Vermelho, Mauro Senise, Danilo Caymmi, João Donato, Francis Hime, entre outros.

Como no disco de 72, a abertura de Na esquina do Clube é feita com “Tudo Que você Podia Ser”, agora, unida à inevitável “O Trem Azul”. Logo de cara, o ouvinte já se dá conta da proposta do álbum: preservar as levadas e as harmonias, delinear boa parte do conteúdo melódico e, no espaço que sobrar, intervir com elegantes improvisos e experimentações. Depois, pinta “Clube Da Esquina” (única peça que não vem dos Clubes, tendo sido lançada ainda antes, em Milton, de 1970), como que introduzindo a grande suíte da faixa seguinte, que enfileira “Clube Da Esquina nº 2”, “Cais” e “Cravo E Canela”, de forma não menos que magnífica.

O próximo número é nosso tema do dia: “Um Girassol Da Cor De Seu Cabelo”, parceria dos irmãos Borges, que ganha um arranjo fiel pelas mãos do trio jazzista – pelo menos até enveredar para a seção rock, que consegue ser até mais viajandona que sua análoga na gravação original. Já vale o disco.

Mas não chegamos nem na metade, vindo então uma pequena seção de Clube 2: “Canoa, Canoa”, aqui, com sabor latino e ar bem-humorado, flagrando um André inquieto, em três timbres diferentes (pianos acústico e elétrico, mais sintetizadores); “E Daí?”, sublime colaboração de Bituca com Ruy Guerra, num arranjo que preserva a ambiência original; e “Nascente” (de Flávio Venturini e Murilo Antunes, lançada originalmente por Beto Guedes em 1977), incorpora ao disco dois novos timbres, um som de moog e o acordeon.

A presença de “Me Deixe Em Paz” nos leva de volta ao primeiro Clube, em seu mais conhecido momento não autoral: o dueto de Bituca e Alaíde Costa nesse samba de Monsueto – e agora, quem brilha é a cozinha de Sérgio e Neymar, enquanto André combina, novamente, três timbres (os dois pianos e o órgão).

Pra encerrar, mais três temas do disco de 78: “Olho D’Água”, com André pilotando de tudo (pianos, sintetizador e sopros), sendo que Sérgio insere uma marotíssima citação, via gongos melódicos, a “Paula E Bebeto” (primeira parceria de Bituca com Caetano, lançada entre os Clubes, em Minas, de 1975); “A Lua Girou”, com mais gongos; e a faixa derradeira, único número solo de André ao piano, “Paixão E Fé”, que cita, linda e apropriadamente, “Calix Bento” (que outro sócio do Clube da Esquina, Tavinho Moura, adaptou do folclore e fez parar em Geraes, mais um lançamento de Milton entre os Clubes, datado de 1976).

A rigor, o jazz já corria nas veias de Bituca desde muito antes de sua estreia em disco, como conta Márcio Borges no livro Os sonhos não envelhecem. O que o André Mehmari Trio faz, nesse disco que é lindo desde a capa, não apenas expõe essa verve jazzística latente de dois dos álbuns mais importantes da música brasileira, como adiciona novas camadas para a fruição de uma obra à qual cabem muitos adjetivos: linda, complexa, onírica, desconcertante, inimitável e, claro, revolucionária.

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