44. Beijo AA Força: “Estupidez Interativa”

A banda não conquistou o Brasil, mas, enquanto durou, agitou bastante a cena musical curitibana. Estou falando do Beijo AA Força, que já vi ser definida como uma banda punk. Mas o rótulo é limitante demais, como se ouve neste segundo álbum, Sem suingue (1995).

De fato, ao longo de 15 faixas, os músicos Rodrigo Barros, Luiz Ferreira, Therciano Albuquerque e Rosinha mostram um domínio de recursos composicionais e instrumentais muito mais sofisticados. Há diversos gêneros, andamentos, fórmulas de compasso… e ideias. Como se verifica desde o título, Sem suingue prenuncia questões identitárias que seriam pautadas muitos anos depois. Isso porque o álbum pode ser lido como uma reflexão, em forma de canções, sobre um dos tantos paradoxos do identitarismo, traduzido na seguinte questão: sendo formado por músicos brancos, sulistas, o Beijo AA Força estaria autorizado a manter relações íntimas com os gêneros afro-brasileiros? Ora, se não o fazem, podem ser acusados de estarem renegando suas indeléveis raízes brasileiras. Por outro lado, se cruzam essa linha (tocando samba, blues e mesmo o rock, que é negro em suas origens), a acusação muda: apropriação cultural. Diante desse dilema, a banda não se intimida e traz, para dentro de Sem suingue, não a defesa de um ponto de vista ou de outro, mas o desbunde, colocando a própria questão identitária em xeque e descrédito.

Os títulos de algumas das canções deixam claro que é essa posição: veja-se “Às Mulatas De Bruxelas” (“Essas mulatas de Bruxelas, precisamos descobrir onde estão elas”), “Negros Blues” (originalmente, um reggae ecumênico de Jards Macalé, gravado com Zé Ramalho) e “Filhos De Gandski” (um inacreditável “afoxé muito branco”, num medley com “Vagabundo” – esta, poderia muito bem estar em qualquer disco da Vanguarda Paulistana).

Falando em música de preto, Sem suingue tem um blues, “Canção Dos Contrários (O Calmo E O Nervoso)”; e dois sambas, “Levava Jurando” (que tem a “participação especial” do Maxixe Machine, na verdade, a contraparte sambista e acústica do próprio Beijo AA Força) e o “Samba Da Cadela (E Da Cachorra)”, com guitarras distorcidas e tamborins. Punk mesmo, talvez seja apenas “Perturbação Elementar” (“Na pior das hipóteses / O vazio do poder será determinante”), que lembra os Titãs da época de Arnaldo Antunes – e ainda assim, em vez de 4×4, tem compassos ternários. Outro rock interessante é “Ainda Vou Me Arrepender Disso”, que antecede (veja os títulos) “Crueldade Mental (Estou Estúpido)”. Esta, por sinal, é a versão letrada da faixa instrumental que abre Sem suingue, “Estupidez Interativa”, nosso tema de hoje, composto por Luiz Ferreira e Rodrigues Barros. O gênero, aqui, é o ska, mas um ska tenso, meio latino e com fraseados surfistas na guitarra.

Ao final do disco, mais uma provocativa faixa com balanço black, “Eu Odeio Jazz Brasil (More Noise, Please)”, que sampleia Steven Jesse Bernstein (e como é engraçado escutá-lo pronunciando os já famosos chavões “More noise please!” e “God damn noise!”, exatamente sobre uma base instrumental cacofônica). Finalizando pra valer, a vinheta “Poeta Sentado” – a segunda do álbum, já que a terceira faixa recita (forma educada de dizer melodramatiza) um poema do escritor curitibano Paulo Leminski (“Amarga mágoa / O pobre pranto tem / Por que cargas-d’água / Chove tanto / E você não vem?”).

O antropólogo Hermano Vianna disse, sem meias palavras, que Sem suingue pode ser colocado ao lado, ou até em posição superior, de Acabou chorare (clássico supremo dos Novos Baianos) e Samba esquema noise (a vigorosa e obrigatória estreia do Mundo Livre S/A). Exagero? Ouça o Beijo AA Força e tire suas conclusões.

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